23 de outubro de 2010

Pensei em te dizer ..

Cortei os pulsos e deixei o sangue escorrer dentro do copo de vidro. Estava quente e emplastado numa cor vermelha escura como o coração que oferecia as ofertas para o dia dos namorados no shopping Center. O dia amanheceu e ainda não morri, nem de medo, nem de solidão, nem de amor. O estado paranóico que instiga minha mente a pensar em partir minha própria cabeça ao meio não é capaz de sucumbir ao impulso de apertar o gatilho.

Já comprei minha passagem para o inferno. Cinco cartelas inteiras de remédios para esquecer quem sou poderiam facilitar muito a percepção de que o trilho chegou ao fim. Talvez seja a hora de escrever uma cartinha de despedida e imaginar quem serão os convidados para o meu enterro. Você vai chorar dois ou três dias e depois achará melhor que eu tenha partido sem deixar um recado com a voz embriagada no seu telefone celular. Conte a todos quem eu fui e o que fiz e não se esqueça de dizer quem sou. Cuidado ao vasculhar minhas coisas, meus segredos e minhas gavetas. Entre meus livros tem anotações importantes, se achar conveniente pode vendê-los a um preço justo, aqueles que não interessam a ninguém doe para algum orfanato, para alguma igreja, para alguma escola, sei lá, não estarei mais preocupado em esconder o que tenho vivido na sua ausência.

O que me resta ainda de sangue no corpo escorre como a areia de uma ampulheta. Em pouco tempo vou desmaiar, apagar e provavelmente desaparecer desse mundo. Não terei mais cobranças, gritos e nem as recordações de todas as vezes que senti culpa por estar apenas vivendo o que considerei importante, verdadeiro e leal a mim mesmo. Esse egoísmo evidente poderá servir para quando quiser falar mal de mim num momento de ódio. O paradoxo desse instante entre a vida e a morte é perceber que não fui um bom filho, um bom pai e nem um bom companheiro, embora seja previsível que vocês venham a relembrar momentos divertidos, pensamentos inteligentes ou atitudes louváveis. É mais fácil sem dúvida nenhuma elogiar um morto.

A lâmina que usei para dar o talho na artéria que agora expele toda esta cor escarlate jaz sobre a pia do banheiro. O copo de vidro transbordou. Sinto frio e começo a crer que não existe nada após este estágio e que todo aquele mistério de luzes e pessoas que aparecem para buscar as almas é só mais uma invenção para amenizar o medo do desconhecido. Talvez o fato de ter tido o privilégio de escolher meu próprio meio de debandar daqui é que pode ter me colocado de castigo para toda a eternidade... Não se admite nesse mundinho de hipocrisia e demagogia barata que alguém acione o botão de desconectar. Isso soa como covardia. Bulhufas, que diferença faz? A última canção que escuto é o som da voz da minha filha cantarolando alguma melodia inocente. Diga a ela o quanto a amei. Meu outro amado e querido filho dorme tranqüilo, dei-lhe um beijo na testa antes dessa partida e o louvei como a redenção do que pude fazer de melhor. Por todos os julgamentos que passei, ninguém foi mais rigoroso do que eu mesmo no veredicto final. A morte tem dentes amarelos, mas sorri com certo conforto.

Essa é a minha fantasia de suicídio.

Mas, não foi dessa vez.

Tico Sta Cruz

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